Nas tintas do jornal, a versão viva de um pequeno arqueólogo
Presente na feira de lançamento do PalavraMundo, jornal dedicado a produção de conteúdos para crianças, o protagonista da reportagem de capa saía das páginas de sua história para uma conversa “ao vivo” com a criançada
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Nos revezávamos para fazer a “prensa” funcionar. Era a diversão do PalavraMundo na Feira da Criança. Dividíamos o estande com a Cuca Fresca, uma editora de livros infantis que tinha uma livraria na rua Fernando Machado, bem no centro de Florianópolis.
A “prensa” era um artefato de madeira, construído e decorado pelo carnavalesco Carlos Schneider especialmente para o evento. Nela havia espaço para uma pessoa e uma pilha de jornais. Quando a criançada apertava o “botão mágico”, fazíamos a “prensa” sacudir até “cuspir” um exemplar de estreia do jornal.
Na capa, uma foto de Reinaldo Pereira Marciano, o “arqueólogo” mirim que ajudava um grupo de pesquisadores da Universidade Federal de Santa Catarina a recuperar a fortaleza de Santo Antônio, na ilha de Ratones Grande. Receber o jornal direto da “prensa” era um momento ímpar. Mas a surpresa ainda estava reservada.
A cada edição de funcionamento da “prensa”, Reinaldo se materializava no meio da criançada, como que alçado das páginas centrais que contavam sua história. Era como se o PalavraMundo desse vida ao protagonista da reportagem de capa antes mesmo de ser lido.
Quando ele chegou à praia da Barra do Sambaqui no barco da família duas semanas antes, pouco havíamos pensado sobre como seria nossa participação na feira. Sabíamos apenas que estaríamos lá. Nosso convidado só saberia dias antes e teve muitas dúvidas quanto a participar do lançamento do jornal.
Pela ajuda nas escavações e na recuperação do forte, Reinaldo ganhava uma ajuda de 16 mil Cruzeiros ao ano, o equivalente a cerca de 10 mil Reais quando convertidos pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). Os dedos das mãos contavam as vezes em que ía à cidade nesse período.
O pai, seu Domingos, o zelador da ilha de Ratones Grande, era um sujeito simples e tinha lá seus receios. Nem à escola Reinaldo estava indo à época. Estudar representava uma viagem de cerca de 40 minutos de barco, mais meia hora a pé. Algo difícil de competir com o tempo dedicado a ajudar aos pesquisadores da UFSC.
Eram quatro horas da tarde de sábado, mais ou menos, quando Reinaldo nos levou à ilha. Apresentou todos os cantos, mostrou todos os objetos cuidadosamente guardados para preservar a história da fortaleza. Nos guiou inclusive pelo “sobrenatural”, através dos contos misteriosos e pitorescos da comunicade pesqueira açoriana.
As mãos eram cuidadosas, como as de quem faz a própria rede de pesca, e a fala tão rápida que só treinando o ouvido para entender o que dizia. Parte estava no contexto, a dedução era fácil. Parte era um exercício de tradução de uma linguagem bem comum para a comunidade onde vivia. Apesar de nascidos em Florianópolis, nós do PalavraMundo estávamos longe de compreender o “manezês” típico com facilidade.
Reinaldo juntou-se ao universo mirim que o jornal recém-criado passou a adotar nas outras duas edições seguintes. Sim, foram só três. Uma a cada trinta dias depois do lançamento. Na Feira da Criança, o “arqueólogo” de 14 anos fez coro com os repórteres mirins que vivenciaram outras histórias ricas, assunto da semana que vem.
Por agora, vamos conhecer a história publicada no jornal em outubro de 1990 na página central, que começa assim…
O pequeno que recupera a história
Com as mãos ásperas de um pescador, o menino escava mais um palmo de terra. Movimenta com muito jeito a colher de pedreiro e o pincel. O menino invade a ciência de recuperar a história. História de um forte antigo, cheio de lendas e que hoje está em ruínas. Entre engenheiros, arquitetos, arqueólogos, biólogos e pedreiros ele se concentyra apenas no seu trabalho. Escavar o presente para conhecer o passado.
Reinaldo Pereira Marciano mora na Ratones Grande. Uma ilha que só não é deserta porque hoje 25 pessoas, entre cientistas e trabalhadores, estão reconstruindo o Forte de Santo Antônio. É nesta fortaleza militar desconhecida para a maioria dos nativos de Florianópolis que o menino trabalha, estuda, brinca, dorme e sonha.
Sua casa fica na entrada do forte. É de madeira, com dois quartos pequenos e uma cozinha. Mas sua vida vai muito além daquelas paredes opacas. “Eu conheço a ilha toda”, conta orgulhoso. Há pouco menos de um ano ele divide com o pais, a madrasta e o irmão mais moço o lampião, a lanterna de pilha e a antiga fonte de água construída entre as ruínas.
Sonhar com a televisão é possível. Um gerador de energia elétrica deve ser instalado em pouco tempo. Mas o aparelho de TV não é tão importante. Não para o pequeno arqueólogo. Entre um joguinho de futebol com o irmão e os livros de ciências rasgados e desencapados, as horas de folga são ocupadas com o mergulho, a pesca (ele fabrica as próprias redes) e as armadilhas para os pequenos pássaros. Pássaros que ele deseja livres.
A escola está em segundo plano. Pelo menos por enquanto. Aos 14 anos, miúdo, fala rápida e muito firme, Reinaldo justifica o abandono. “Eu levo meia hora a pé para chegar lá”. Mas ele vai voltar aos estudos no ano que vem. Vai trabalhar nas escavações durante o dia e à noite vai de barco para a escola. “O pai me leva. Durmo na casa da vó e depois venho no outro dia com o pessoal que trabalha aqui na ilha”.
Oportunidade para mais uma das seis ou sete viagens de baleeira por dia. Ida e volta entre a ilha e a praia da Barra do Sambaqui são 40 minutos. Tempo que aproveita para contar histórias aos passageiros que costuma transportar com frequência ou apenas para observar os botos “passeando” n o mar quase sempre calmo.
Quando pode, vai à cidade. “Umas 10 vezes por ano”, gastar um pouco dos 16 mil Cruzeiros que ganha como salário. Mas todo final de semana vai com os pais aos bailes domingueiros das localidades vizinhas. Ao amanhecer as segundas-feiras, retoma o rumo de restauras seu forte…
A reesponsabilidade de um sabe-tudo
Reinaldo se sente responsável pelo trabalho de recuperação do forte. Primeiro porque o pai, seu Domingos, é o selador da ilha de Ratones Grande. O guardião do forte. Depois, porque o pequeno arqueólogo se orgulha de ter conquistado a confiança da arqueólogia Edna June Morley. Ela é uma das pessoas responsáveis pelos estudos e pela recuperação da fortaleza. Dona Edna viajou e deixou Reinaldo cuidando de tudo.
Medo de perder alguma coisa? Nenhum. Os pesquisadores terminaram de escavar a casa da palamenta (casa de armas), que aghora vai ser restaurada. Com os mapas na mão, Reinaldo não tem dificuldade alguma para mostrar como é que a fortaleza vai ficar depois de pronta. É seguro até em dizer os trabalhos vão demorar muito mais do que os cinco meses previstos. “Vai precisar mais de ano”.
Foi dona Edna quem o levou para trabalhar como arqueólogo e o ensina na arte de entender o passado. “É que eu trabalhei na outra escavação e ela já sabia”, esclarece o menino. Reinaldo conhece todos os pontos do forte. Por onde ele passa, a “professora” explia tudo.
Na casa da palamenta ele guarda um pequeno potinho com três balas de revólver. “Essas eu não achei aqui. Essas eu achei quando escavei com o pai, antes de começarem as obras”. Entre os objetos que foram encontrados pelo pequeno arqueólogo durante o trabalho estão cacos de louça, uma caveira de cachorro, pedaços de vidro, cartuchos de espingarda e muiitos cravos (espécie de prego).
Todos eles estão embalados em sacos plásticos e guardados com muito cuidado na sua casa. Em pouco mais de um mês que Reinaldo trabalha com dona Edna, os documentos e as ruínas são a sua vida. O pequeno arqueólogo espera apenas que os visitantes, no futuro, possam aprender como ele.
Luciano Bitencourt