Para onde se vai na educação regulada pela tecnocracia e desejos de consumo
Confesso que não compreendo muito bem os ritos de passagem institucionalizados na educação. E os mais conflitantes, penso, são os que demarcam as fases de aprendizagem. Na educação básica, por exemplo, deixa-se de brincar e começa-se a estudar quando termina a pré-escola (o prefixo diz tudo).
Essa lógica acompanha o estudante em toda a sua jornada. Terminada a primeira etapa do ensino fundamental, vem o convívio com mais de um professor por disciplina e as dificuldades com a segmentação do conhecimento explicitamente demarcada na rotina de estudos. A cereja do bolo é a transição para o ensino médio e o estresse com os processos seletivos para a chamada educação superior.
Tradicionalmente, cada fase (educação infantil, fundamental I, fundamental II e ensino médio) encerra um ciclo que firma um certo status educacional. Até no encerramento da pré-escola tem formatura. Tudo está voltado para o rito e seus símbolos. Da jornada em si, pouco se reflete fora da escola.
Quando li Marc Augé pela primeira vez, eu brigava (literalmente) com a concepção de educação na qual os espaços de aprendizagem eram formulados para atender exclusivamente ao planejamento de quem ensina. E a ideia de não-lugar pareceu descrever bem o que me incomodava (e ainda incomoda).
Na concepção do antropólogo francês, não-lugares são, grosso modo, lugares de passagem, sem laços nem memória social. São vias por onde se anda sem reconhecer nada nem ninguém e onde não há convívio duradouro, a não ser no tempo de um trânsito. Os exemplos clássicos são os shopping centers, os aeroportos, lugares associados a símbolos de consumo.
Por mais estranho que pareça, os não-lugares de Augé são lugares. A negação está nos passantes, no “uso” dos espaços apenas para ligar destinos em busca de consumo, de desejos individuais. Portanto, as estruturas que demarcam um certo espaço podem ou não ser reconhecidos como lugares, dependendo de como os ocupamos.
Educação sem vida tem lá seus não-lugares
As escolas mais convencionais focam o processo de aprendizagem em um tipo de “treinamento” nada relevante no mundo de hoje. Os estudantes são submetidos a avaliações periódicas e baseadas em perguntas cujas respostas atendem a um certo padrão esperado. É como se mede o conhecimento em todas as fases da escolarização.
Atestado esse conhecimento, se confere um documento comprobatório que legitima a trajetória escolar em um histórico. Esse documento sintetiza o percurso, mais ou menos parecido em todas as escolas, contendo as referências-chave: ano, disciplina e nota. O histórico escolar é a descrição econométrica de um percurso. Prova quase nada, a não ser o cumprimento de etapas quantitativamente avaliadas.
No final, comprovado o percurso pelo histórico, um certificado é conferido para dar validade à trajetória. Olhando esses documentos, pouco se sabe sobre o estudante. Mas são eles que formalizam os ritos e abrem as portas para os passos posteriores no percurso. Sem o ensino médio completo e certificado, não há ingresso em universidades e faculdades, por exemplo.
Claro que a regulação é necessária. Mas a questão aqui é a excessiva tecnocracia do sistema educacional. Conheço bons professores e boas professoras que tiveram de fazer cursos específicos apenas para ter um documento comprobatório que chancelasse o que já faziam com qualidade. E o que dizer de vestibulandos que responderam ao padrão esperado nas provas de seleção para a educação superior, mesmo sem a chancela do ensino médio concluída?
O reconhecimento no sistema não está no compromisso com os espaços de aprendizagem. Via de regra, são os símbolos de consumo, os documentos comprobatórios, que determinam quem entra ou não, quem segue ou fica, quem é bom ou ruim. Retomando Marc Augé, arrisco dizer que certificados e diplomas tomaram o lugar do conhecimento e do caráter social da educação.
Objetos de desejo individual, certificados e diplomas normalizam não-lugares, por onde se passa sem compromisso com o espaço, sem laços sociais que gerem oportunidades, sem motivações para aprendizagens transformadoras. Bons estudantes estão em boas escolas porque são bons estudantes, são fruto de uma selação intelectual ou econômica privilegiada por princípio e corroboradas por avaliações econométricas.
Só que a vida na educação está em transformar os espaços constantemente. Boas escolas são as que modificam a condição de seus estudantes com o que de melhor podem oferecer. E bons estudantes são os que superam as adversidades e reconhecem que aprender exige mais do que vislumbrar um certificado ali adiante.
Tecnocracia, econometrias e papéis comprobatórios impulsionam os não-lugares na educação, quando não a evasão escolar. Os lugares educacionais precisam ser ocupados de fato, construídos coletivamente entre quem ensina e quem aprende, sem o controle excessivo dos padrões de resposta esperados e focados no contexto social demarcado pela convivência, pelo interesse nos problemas efetivamente vividos.
Se não dá para superar os ritos de passagem, que sejam símbolo de desenvolvimento humano e não objetos de desejo para consumo.
Luciano Bitencourt